Uma crônica especial sobre o sotaque mineiro!

Hoje quero falar com vocês sobre nosso sotaque. Ele é lindo e cheio de personalidade. Tanto que é só a gente sair do estado que escuta a pergunta “você é mineiro?”. Comigo acontece sempre e muitas vezes eu só falei uma palavra. Por isso que amo a crônica “Sotaque mineiro: é imoral, ilegal ou engorda?”, do Felipe Braga Netto. Veja:

Sotaque mineiro: é ilegal, imoral ou engorda?

“Minas não é palavra montanhosa.

 É palavra abissal. Minas é dentro

 E fundo”.

Drummond

Gente, simplificar é um pecado. Se a vida não fosse tão corrida, se não tivesse tanta conta para pagar, tantos processos – oh sina – para analisar, eu fundaria um partido cuja luta seria descobrir as falas de cada região do Brasil. Cadê os linguistas deste país? Sinto falta de um tratado geral dos sotaques brasileiros. Não há nada que me fascine mais. Como é que as montanhas, matas ou mares influem tanto, e determinam a cadência e a sonoridade das palavras?

É um absurdo. Existem livros sobre tudo; não tem (ou não conheço) um sobre o falar ingênuo deste povo doce. Escritores, ô de casa, cadê vocês? Escrevam sobre isto, se já escreveram me mandem, que espero ansioso. Um simples “mas” é uma coisa no Rio Grande do Sul. É tudo menos um “mas” nordestino, por exemplo. O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar. Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar, sensual e lindo, (das mineiras) ficou de fora?

Porque, Deus, que sotaque. Mineira devia nascer com tarja preta avisando: “ouvi-la faz mal à saúde”. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando ela me faz um favor.

Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque.

Mas, se o sotaque desarma, as expressões são um capítulo à parte. Não vou exagerar, dizendo que a gente não se entende. Mas que é algo delicioso descobrir, aos poucos, as expressões daqui, ah isso é… Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas. Preferem, sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho (não dizem: pode parar, dizem: “pó parar”. Não dizem: onde eu estou?, dizem: “ôncôtô?”). Parece que as palavras, para os mineiros, são como aqueles chatos que pedem carona. Quando você percebe a roubada, prefere deixá-los no caminho.

Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem – linguisticamente falando – apenas de uais, trens e sôs. Digo-lhes que não.

Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade. Fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô. Se der no couro – metaforicamente falando, claro – ele é bom de serviço. Faz sentido.

Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: “cê tá boa?” Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa, é como perguntar a um peixe se ele sabe nadar. Desnecessário.

Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer:

– Mexe com isso não, sô! (leia-se: sai dessa, é fria etc).

O verbo mexer, para os mineiros, tem os mais amplos significados semânticos. Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.

Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:

– Aqui, não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.

Esse aqui é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, olá, me escutem por favor. É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.

Mineiras não dizem “apaixonado por”. Dizem, sabe-se lá por que, “apaixonado com”. Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora: “Ah, eu apaixonei com ele…”. Ou: “sou doida com ele” (ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.

Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de bonitim, fechadim e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: “E aí, vão?”. Traduzo: “E aí, vamos?”. Não caia na besteira de esperar um “vamos” completo de uma mineira. Não ouvirá.

Na verdade, o mineiro é o baiano linguístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma arma apontada para a cabeça.

Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal. Aqui certas regras não entram. São barradas pelas montanhas. Por exemplo: em Minas, se você quiser falar que precisar ir num lugar, vai dizer:

  • Eu preciso de ir.

Onde os mineiros arrumaram esse “de”, aí no meio, é uma boa pergunta. Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe. Asseguro que sim, com escritura lavrada em cartório. Deixa eu repetir, porque é importante. Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum. Entendam… Você não precisa ir, você “precisa de ir”. Você não precisa viajar, você “precisa de viajar”. Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará:

  • Ah, mãe, eu preciso de ir?

No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um tanto de coisa. O supermercado não estará lotado, ele terá um tanto de gente. Se a fila do caixa não anda, é porque está agarrando lá na frente. Entendeu? Deus, tenho que explicar tudo. Não vou ficar procurando sinônimo, que diabo. E não digo mais nada, leitor, você está agarrando meu texto. Agarrar é agarrar, ora!

Se, saindo do supermercado, a mineirinha ver um mendigo e ficar com pena, suspirará:

  • Ai, gente, que dó.

É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras. Eu aviso que vá se apaixonar na China, que lá está sobrando gente. E não vem caçar confusão pro meu lado. Porque, devo dizer, mineiro não arruma briga, mineiro “caça confusão”. Se você quiser dizer que tal sujeito é arruaceiro, é melhor falar, para se fazer entendido, que ele “vive caçando confusão”.

Para uma mineira falar do meu desempenho sexual, ou dizer que algo é muitíssimo bom (acho que dá na mesma), ela, se for jovem, vai gritar: “Ô, é sem noção”. Entendeu, leitora? É sem noção! Você não tem, leitora, ideia do tanto de bom que é. Só não esqueça, por favor, o “Ô” no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção, entendeu?

Ouço a leitora chiar:

  • ..

Vocês já ouviram esse “capaz”? É lindo. Quer dizer o quê? Sei lá, quer dizer “tá fácil que eu faça isso”, com algumas toneladas de ironia. Gente, ando um péssimo tradutor. Se você propõe a sua namorada um sexo a três (com as amigas dela), provavelmente ouvirá um “capaz…” como resposta. Se, em vingança contra a recusa, você ameaçar casar com a Gisele Bundchen, ela dirá: “ô dó dôcê”.Entendeu agora?

Não? Deixa para lá. É parecido com o “nem…”. Já ouviu o “nem…”? Completo ele fica:

  • Ah, nem…

O que significa? Significa, amigo leitor, que a mineira que o pronunciou não fará o que você propôs de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Você diz: “Amor, cê anima de comer um tropeiro no Mineirão?”. Resposta: “Nem…” Ainda não entendeu? Uai, nem é nem. Leitor, você é meio burrinho ou é impressão?

A propósito, um mineiro não pergunta: “você não vai?”. A pergunta, mineiramente falando, seria: “cê não anima de ir”?. Tão simples. O resto do Brasil complica tudo. É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem…

Certa vez pedi um exemplo e a interlocutora pensou alto:

– Você quer que eu “dou” um exemplo…

Eu sei, eu sei, a gramática não tolera esses abusos mineiros de conjugação. Mas que são uma gracinha, ah isso são. Ei, leitor, para de babar. Que coisa feia. Olha o papel todo molhado. Chega, não conto mais. Está bem, está bem, mas se comporte.

Falando em “ei…”. As mineiras falam assim, usando, curiosamente, o “ei” no lugar do “oi”. Você liga, e elas atendem lindamente: “eiiii!!!”, com muitos pontos de exclamação, a depender da saudade…

Tem tantos outros… O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema. Sou, não nego, suspeito. Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras. Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão. Se você, em conversa, falar:

  • Ah, fui lá comprar umas coisas…
  • Que’s coisa? – ela retrucará.

Acreditam? O plural dá um pulo. Sai das coisas e vai para o que. Ouvi de uma menina culta, um “pelas metade”, no lugar de “pela metade”. E se você acusar injustamente uma mineira, ela, chorosa, confidenciará:

  • Ele pôs a culpa “ni mim”.

A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas… Ontem, uma senhora docemente me consolou: “Preocupa não, bobo!”. E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: “Não se preocupe”, ou algo assim. A fórmula mineira é sintética e diz tudo.

Até o tchau, em Minas, é personalizado. Ninguém diz tchau, pura e simplesmente. Aqui se diz: “tchau pro cê”, “tchau pro cês”.  É útil deixar claro o destinatário do tchau. O tchau, minha filha, é prôcê, não é pra outra, entendeu?

Deve haver, por certo, outras expressões… A minha memória (que não ajuda muito) trouxe essas por enquanto. Estou aberto a sugestões. Como é uma pesquisa empírica, umas voluntárias ajudariam. Exigência: ser mineira. Conversando com linguistas, fui informado: é prudente que tenham cabelos pretos, espessos e lisos, aquela pele feita nas melhores montanhas… Tudo em nome da ciência. Me explico: é que eu soube que conformações físicas influem no timbre e som da voz, e eu não posso, em honrados assuntos mineiros, correr o risco de ser inexato, entendem?

Felipe Braga Netto

Muito legal, né?

E a notícia boa é que o livro do Felipe, chamado As Coisas Simpáticas da Vida, ganhará uma nova edição em breve e essa crônica compõe a obra.

O livro foi lançado em 2005 e desde então recebeu muitos elogios dos leitores, razão pela qual vai chegar nas livrarias em uma edição mais moderna, com ilustrações da Anna Cunha. Olha que lindo:

Vai ter um evento de lançamento por aqui e assim que tivermos novidades eu posto para você.

Ah, tem várias crônicas sobre Minas Gerais… Não é só essa. Tenho certeza que você vai amar!

Beijos, Isabela.

3 comentários em “Uma crônica especial sobre o sotaque mineiro!”

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